quarta-feira, 24 de março de 2010

Um lugar onde os contrastes se completam



Em uma via que liga a cidade alta à cidade baixa de Salvador, a Avenida Contorno, situa-se o conjunto arquitetônico do Solar do Unhão, construído no século XVI. Um lugar que desperta a atenção por vários motivos, sendo um deles o fato de estar na fronteira entre o som dos automóveis da cidade e o barulho das ondas da Baía de Todos os Santos.

Um conjunto de surpresas. A entrada íngreme e o chão pedregoso escondem as preciosidades que aos poucos vão se desvendando ao olhar daquele que o explora. Cada entrada, saída, descida e subida do casarão ou solar, capela e galpões trazem marcas da história de Salvador e traços das transformações vividas pela cidade ao longo do tempo.

Seus encantos não se restringem aos sinais do passado, o presente importa. E é a arte que lhe possibilita permanecer na fase mais passageira do tempo, traz a renovação. A criatividade, a reflexão, a transformação são expressos em cada desenho, pintura, fotografia, escultura expostos no Museu de Arte Moderna da Bahia, que encontrou no Solar do Unhão o lugar propício para se eternizar.


Travessuras do tempo


O tempo passava e a bela Salvador ganhava novas formas. Os portugueses e africanos que aqui vieram trouxeram seus modos de vida e redesenharam a paisagem da cidade. As ruas se tornaram maiores e mais numerosas, as casas pomposas do centro da cidade contrastavam com as singelas habitações da periferia. E o comércio era a força motora das relações que aqui se estabelecia.

Enquanto isso, no conjunto do Solar do Unhão, entravam e saíam pessoas, de acordo com cada época. Primeiro, foi propriedade do sertanejo e cronista português Gabriel Soares de Sousa, depois, casa de beneditinos. No século XVII, se transformou em fazenda de subsistência da família do desembargador do Tribunal da Relação, Pedro Unhão Castelo Branco, sendo substituído pelo proprietário do ofício de escrivão da alfândega da Bahia, José Pires de Carvalho e Albuquerque e seus descendentes, até o início do século XIX.

Por volta de 1820, os donos do solar descobriram que ele podia render lucros. Numa época em que a produção manufatureira se desenvolvia intensamente, os Carvalho e Albuquerque o transformaram em usina de beneficiamento de arroz. Depois disso, passou a ser explorado por estrangeiros. Virou fábrica de rapé e tabaco, dirigida pelo suíço François Meron e, já no fim do século XIX e início do século XX, foi alugado para a empresa americana, Standard Oil Company of New Jersey, para ser depósito de combustível.


Boatos de um beato


A capela do conjunto arquitetônico do Solar do Unhão, construída no século XVII, rendeu estórias que não estão registradas, mas nem por isso são menos interessantes. Conta-se que, nos tempos dos Pires de Carvalho e Albuquerque, um padre foi encontrado morto. Há quem diga que foi suicídio e quem diga que foi assassinato. Mas o que surpreende mesmo é a causa da morte. Ele deu ouvidos à tentação e se relacionou com uma filha da família, descreve a historiadora e mediadora cultural do MAM, Roseli Costa.

Ao lado da capela, há uma fonte natural de água. Diz-se que certa vez um cego lavou os olhos ali e ficou curado. Daí em diante, as pessoas passaram a cultuar Santa Luzia, a protetora dos olhos, na igreja do solar. Porém, quando François de Meron, que era protestante, alugou o local para instalar a fábrica de rapé e tabaco, desativou a capela e a transformou em alojamento. Ele não acreditava na mão-de-obra local e trazia trabalhadores da Europa. Enviou as imagens de Santa Luzia para a Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia, situada perto do solar.


Desatinos da história


A estrutura do conjunto arquitetônico do Solar do Unhão enfrentava grave perigo. Como depósito de combustível, corria o risco de explodir a qualquer momento, e se perderia uma construção que guarda tantos registros da história de Salvador. Foi então que em 1946, segundo a historiadora Dra. Suzana Fevers, a Superintendência do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional (SPHAN) – depois substituído pela sigla IPHAN -, reivindicou por meios jurídicos e legais o tombamento do local e a desapropriação pela companhia de combustível.

Ainda assim, a preservação do lugar não estava garantida por completo. O Departamento de Estradas e Rodagens da Bahia (DERBA) pretendia construir duas vias que ligassem o bairro do Comércio à Barra, destruindo grande parte do conjunto do solar. “Destruiria as fontes, os galpões, e mesmo os edifícios ali preservados como o solar. Eles perderiam sua ambiência, que é tão importante quanto o edifício, ou seja, o contexto em que eles estão inseridos”, salienta o arquiteto, urbanista e pesquisador Nivaldo Andrade.

Por sorte, Diógenes Rebouças, um arquiteto e urbanista muito influente da época, convenceu o governo da Bahia a alterar o projeto. Foi então construída a Avenida Contorno, que liga o Campo Grande ao Comércio.


Bombardeio de Lina


Nesse momento, longe das tensões que sofria o solar, Lina Bo Bardi, uma arquiteta italiana se mudava para o Brasil. Inicialmente, foi recebida no Rio de Janeiro, onde conheceu pessoas importantes, como Assis Chateaubriand, que a convidou para construir um museu de arte no país.

Mas ela não permaneceu no Brasil apenas por causa do convite, apaixonou-se pela terra tropical. Naturalizou-se brasileira em 1951, e declarou “... O Brasil é meu país duas vezes, é minha 'Pátria de Escolha', e eu me sinto cidadã de todas as cidades".

A primeira obra de Bo Bardi que teve grande repercussão foi a sua residência, a Casa de Vidro, construída em 1951, no bairro do Morumbi, em São Paulo. Consagrou-se definitivamente entre 1957 e 1968, quando projetou o Museu de Arte de São Paulo (MASP).

Conheceu a Bahia em 1958, a convite de Diógenes Rebouças, para ensinar Teoria da Arquitetura, na Universidade Federal da Bahia. No ano seguinte, foi o governo do estado da Bahia que a convidou para constituir e dirigir o Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM-BA), explica Nivaldo Andrade.

Inicialmente, o MAM baiano foi instalado no foyer do Teatro Castro Alves, onde houve exposições de obras, mostras, além de conter um teatro de arena, em que foram realizadas peças de teatro e exibições de filmes. Mas foi por pouco tempo...

Foi no Solar do Unhão que o MAM baiano se consolidou. Lá, Bo Bardi enxergou várias potencialidades: a apropriação do seu valor histórico, a beleza da sua arquitetura e localização, e a possibilidade da democratização das artes visuais.

“Ela imaginou a arte mais próxima do público, do povo, do que como era tratada. A arte era uma coisa muito distante. Ela pensou num casarão de janelas abertas, ou seja, quem observava a obra, também observava o mar, o ambiente e todo esse entorno aqui do Solar do Unhão: a Avenida Contorno e o morro. Tudo isso ela enxergou como possibilidade de fruição estética”, destaca Juliana Maia, assessora de imprensa do MAM.

Para abrigar o museu, o solar precisou sofrer algumas intervenções. A arquiteta italiana, baseada na teoria do restauro crítico, decidiu não apenas valorizar as características iniciais do conjunto, mas também aquelas que adquiriu com o tempo.

“Ela entende que o terceiro andar do solar que foi construído posteriormente era importante que se preservasse, porque do ponto de vista estético ele estava integrado, que os galpões faziam parte da história da fábrica, que outros traços desse passado industrial, como os trilhos que estão no piso, guindastes, monta-cargas, etc, também faziam parte desse passado”, destaca Andrade.

Preservar e inovar. Foram essas as marcas da reforma que Lina Bo Bardi realizou no conjunto. Simplificou as esquadrias e as pintou de vermelho; desenhou divisórias treliçadas para dividir os espaços internos do edifício; engenhou uma escada monumental no interior do casarão e abriu uma janela sobre a entrada principal.


Opostos que se atraem


As idéias de Lina Bo Bardi parecem ter sido inspiradas na união dos contrastes. Quando, em 1960, o MAM passou a funcionar no Solar do Unhão, a arquiteta idealizou uma articulação entre a arte popular e a erudita. Criou então o Museu de Arte Popular (MAP), que valorizava o artesanato e a indústria. Os dois museus seriam faces da mesma moeda, defendeu a criadora. Dirigiu o espaço até 1964, época em que foi ocupado pelo Exercito, na Ditadura Militar.

O tempo passou, e com ele algumas idéias de Bo Bardi se perderam e outras foram fortalecidas. No ano em que o Museu de Arte Moderna da Bahia está completando cinqüenta anos de existência, pode-se afirmar que ele vem se consolidando na sociedade como um importante espaço para a classe cultural da Bahia.

As primeiras obras do MAM foram doações do Museu de Arte da Bahia (MAB). A partir de 1993, com a realização do Salão da Bahia, um concurso anual de nível nacional, as obras dos vencedores passaram a ser parte do acervo, que hoje possui mais de 1.100 obras de artistas como Tarsila do Amaral, Carybé, Mario Cravo, Juarez Paraíso, Mestre Didi, entre outros.

O MAP foi extinto, mas os ideais de democratização das artes visuais continuam sendo perseguidos. Através do Núcleo de Arte e Educação, estabelece-se um diálogo entre o MAM e a sociedade, onde se promove cursos para leigos e profissionais. “A gente realiza visitas mediadas por monitores com escolas e comunidades. Além disso, temos um agente comunitário de cultura, que visita comunidades, apresentando o museu e convidando para vir ao museu; quebrando o paradigma do museu como aquele lugar fechado, contemplativo, inativo e elitista”, destaca Juliana Maia.

A história do Solar do Unhão, unida com a do Museu de Arte Moderna da Bahia, mostram o valor simbólico que o conjunto possui e sua importância para a cultura de Salvador. É como diz Suzana Fevers: “Ele tem uma história que está vinculada à própria história da cidade. Com isso, ele adquire esse valor para a sociedade baiana. E tendo esse valor, tem que ser preservado. Agora está bem cuidado pelo museu e deve continuar assim, porque isso marca a nossa memória enquanto soteropolitanos”.


Se quiser saber mais sobre o MAM, acesse: www.mam.ba.gov.br


Por: Rebeca Caldas